quarta-feira, 21 de março de 2007

PRIMEIRO ASSUNTO SÉRIO

Guardo-o, há muito, aqui na minha barra de favoritos. Escrito por Osvaldo M. Silvestre, foi publicado no defundo "casmurro", blog cujo passamento deveria ter tido obituário no jornal e exéquias públicas. A sua alma está ainda visitável e em bom estado, em blogcasmurro.blogspot.com.
É assim:

" 1. Se há coisa que me deixa ainda mais perplexo do que o «cinema português», essa coisa é o «teatro português». Devo dizer que, assim como não consigo encontrar argumentos que não os do paroquialismo ou do nacionalismo cultural para justificar a leitura e estudo de certos escritores nascidos em Portugal, e tantas vezes apodados de «fundamentais» ou «imperdíveis» pelo jornalismo cultural, pela crítica literária e mesmo pela escola, também nunca consegui comover-me com filmes que fazem do serem realizados por portugueses o seu verdadeiro e único cartão de visita. Há seguramente filmes de Manoel de Oliveira que acrescentam ao cinema universal (Acto da Primavera, por exemplo); e há João César Monteiro; e um ou outro filme de um ou outro realizador (por exemplo, Uma Abelha na Chuva, de Fernando Lopes; Onde jaz o teu sorriso, de Pedro Costa; ou Noite Escura, de João Canijo). No todo, porém, a desproporção entre a real valia do inevitavelmente chamado «cinema português» - em grande medida uma invenção curricular de cursos de cinema, da política de preservação patrimonial da Cinemateca Portuguesa e de uma política cultural centrada na exploração de uma imagem identitária, fortemente reificada, para consumo externo – e o barulho e comoção públicos por ele suscitados, consegue ultrapassar a desproporção entre a magnitude dos novos estádios de futebol do Euro 2004 e a miséria de público que eles melancolicamente albergam a cada duas semanas (e não estou, com este exemplo, a deslocar a questão do cinema português para o plano em que ela imprópria e viciadamente acaba sempre por se colocar – a do público -, deslocação que acaba por produzir, e supostamente legitimar, aberrações como o recente Crime do Padre Amaro).Quando passamos para o campo do teatro, as coisas parecem tornar-se ainda mais marcianas. Gustavo Rubim, que manifestamente, e um tanto surpreendentemente, para mim, considera o «teatro português» uma coisa muito estimulante, chamou aqui, há tempos, a atenção para uma das manifestações da enfática auto-representação de que se nutrem os intervenientes na nossa cena teatral. Resumindo, numa versão que no entender de Rubim provém da doxografia brechtiana instalada após Abril de 74 (mas que creio remontar já às leituras que sempre se fizeram da intervenção de Garrett na questão do «teatro nacional»), para grande parte da gente do meio o teatro é arte nobre porque republicana, republicana porque democrática, democrática porque cívica, cívica porque didáctica. O teatro é a democracia e a república, já que nele a ágora se representa, num modelo de 1 para 1, em palco. Logo, se o teatro é entre nós débil, é a democracia quem mais sofre com isso pois não há democracia sem a interiorização, pelos cidadãos, dos mecanismos da performatividade teatral que são a própria democracia. O teatro educa e forma cidadãos esclarecidos, i.e., intelectuais aptos a desmontar as ilusões de baixo coturno que a democracia tenta tantas vezes contrabandear. E que melhor didáctica para isto, podemos nós perguntar após o desdobramento dos silogismos felizes de que se faz este entendimento dominante do teatro entre nós, que a da distanciação brechtiana, a qual, aduz com pertinência Rubim, é hoje a banalidade de base das teorias da representação antimiméticas? Mas haverá outras?, é caso para perguntar face ao triunfo esmagador do efeito de estranhamento na arte e cultura de massas (é só ver com atenção os vídeo-clips pop-rock), nos mass media (haverá jornalistas, e jornalismo, não-brechtiano, hoje em dia?), na propaganda política, etc.Ciclicamente, e sobretudo em momentos de crise e comoção, somos revisitados por estas concepções simultaneamente didácticas, políticas e, não há como não o dizer, algo deslocadas e megalómanas, do papel social e político do teatro. É decerto inútil recordar, neste contexto, que uma arte não se confunde com uma antropologia, por isso que (i) a arte não é nunca a vida, mesmo quando se esforça por imitá-la (princípio, ou banalidade, que vale tanto para antropologias como para sociologias); e que (ii) numa arte se podem exprimir antropologias as mais diversas e mesmo contraditórias, realistas ou fantasistas, didácticas ou lúdicas, cívicas ou anticívicas, etc.Mas é sobretudo difícil não adivinhar nesta auto-representação do teatro como magia sócio-política uma das várias estratégias de compensação daquilo que é a menoridade histórica desta arte entre nós. Por outras palavras, o problema residiria não tanto nem exactamente na debilidade da nossa tradição teatral mas na de uma sociedade que, ao desprezá-la, tem o que merece: não a tradição débil antes referida (nenhum membro da comunidade teatral o admitiria sem ressalva, sob pena de se auto-refutar nesse passo) mas a sociedade amputada (do teatro e, por extensão, da sua «educação para a democracia») que supostamente é, em perspectiva histórica, a nossa.Esta estratégia compensa de muita coisa, e na aparência resolve mesmo todos os problemas do nosso teatro. Comecemos pelo fim. Desde logo, fica resolvida a questão da menoridade e, o que seria inevitável mas talvez não, a das origens várias dela. Se o teatro é uma paideia, então é um crime político-educativo amputar uma sociedade dessa paideia. É estrita obrigação da sociedade resolver um problema sem cuja resolução não haverá plenamente sociedade mas apenas um arremedo dela. O problema, antes de ser cultural, ou mesmo artístico, é pois sócio-político, pelo que cabe estritamente a quem governa zelar por esta versão melhorada da coisa pública; a não ser que se prefira, por deliberado obscurantismo, uma versão não-melhorada da coisa pública (limito-me a reproduzir aqui um tropo recorrente no discurso reivindicativo do nosso teatro: o do premeditado obscurantismo dos poderes). Não espanta que daqui decorra, sobretudo nos sectores mais crítica e politicamente empenhados, uma relação com o Estado que, no que concerne à reivindicação de apoios à criação, nunca descola verdadeiramente de uma posição de «direito natural», publicamente traduzida numa «retórica da arrogância» que as instâncias de mediação do campo cultural – críticos, jornalistas, etc. – em rigor nunca questionam. E nunca questionam porque, como é tão evidente, aceitam sem ressalva o fundamento político-cultural, ou didáctico-cívico, dessa retórica, fundamento sem o qual a sua actividade nem parece ser pensável.2. Sendo essa posição seguramente debatível, como por definição todo o direito natural, o meu ponto é contudo outro: esta perspectiva «educativa» do teatro, que é uma injunção feita ao Estado sem possibilidade de recurso para segunda instância, é provavelmente a melhor estratégia, senão mesmo a única, para minimizar o problema da menoridade histórica do nosso teatro. Digamos que ela subalterniza decisivamente a História, e os seus conteúdos ensináveis em disciplinas de «História do Teatro Português», em favor da performatividade, que é como quem diz, em favor do presente. Trata-se de fazer teatro, de fazer teatro em Portugal (o que é e, obviamente, não é igual a «fazer teatro português») mas, mais relevante, trata-se de «fazer a nação», por meio da única arte que em rigor permite fazê-la, já que o teatro é o performativo em acto e em exemplo: ele é a história do presente desenrolando-se à nossa frente. O problema, que o nosso meio teatral parece achar um pequeno problema, ou um problema pragmaticamente dispensável, é que do mesmo passo a questão do teatro, por mais estratégias brechtianas que se activem, torna-se uma questão estritamente política e, ironia das ironias, obrigadamente representacional: o teatro representaria a vontade (como diria Renan) que a nação tem de o ser na medida em que a nação, como o teatro, se reinventa e faz todos os dias. Para o meio teatral português, a nação teria adoptado o ponto de vista da cegueira, renunciando à sua mais fiel representação, o teatro – ou submetendo-o a uma lógica de sobrevivência na penúria, que iria dar no mesmo.O ponto aberrante desta argumentação, contudo, reside no facto de que o nosso teatro só pode produzir uma representação fidedigna da nação na medida em que opte inteiramente pelo performativo em detrimento do pedagógico que ela também constitui (sigo aqui, como se terá percebido, a discriminação de Homi Bhabha entre pedagógico e performativo na temporalidade disjuntiva da nação). O nosso teatro, digamos assim, tem historicamente pouco a ensinar, razão pela qual não pode deixar de subalternizar o pedagógico em favor do performativo. E tem pouco a ensinar porque se é verdade que tem muita história, não é menos verdade que muito pouca dessa história é transformável em «objecto pedagógico».Convirá esclarecer que não confundo teatro com texto dramático, como é óbvio. Mas também não aceito a desonestidade teórica e intelectual implícita numa discriminação rígida e absoluta entre teatro e literatura dramática, a qual é entre nós mais uma das estratégias de ressalva de um património demasiado pobre para novas descobertas das Américas, mesmo que em virtude de novos métodos centrados ou na semiótica teatral ou na panaceia universal da performatividade. A pobreza patrimonial do teatro português é antes de mais a pobreza da nossa literatura dramática, e quanto a isso não há volta a dar à questão. O próprio Gil Vicente não dá para tudo, desde logo porque um primitivo não permite as reapropriações e modernizações de um Shakespeare (e não deixa de ser significativo que a mais poderosa modernização de Gil Vicente no período contemporâneo tenha consistido na sua releitura a partir de… Brecht). E o que vem depois, com as excepções conhecidas, não faz da nossa literatura dramática uma arte menos descontínua do que, por exemplo, a música erudita, pese embora a «Escola de Évora» ou outros segmentos mais ou menos exumáveis.Dizia-me há dias um colega, a propósito das reformas que se têm verificado nos cursos de Línguas e Literaturas Modernas e que têm vitimado a carga curricular de Literatura Portuguesa, que bem vistas as coisas não se percebia por que razão, senão pela do velho e relho nacionalismo, essa diminuição é tão ressentida pelos professores da disciplina. Afinal de contas, a literatura portuguesa é, como disse memoravelmente Antonio Candido no «Prefácio» à sua Formação da Literatura Brasileira, um «arbusto de segunda ordem no jardim das Musas». Entende-se que nos esforcemos por confrontar os alunos com os textos de Fernão Lopes, Gil Vicente, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, Camões, o Padre Vieira, algum Garrett, Camilo, Eça, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Pessoa. Fora disto, não se vê o que seja perda absoluta e irredimível. Por que razão, aliás, nos doemos tanto por não se estudar António Ferreira, D. Francisco Manuel de Melo, Herculano, Antero ou Nobre e nada nos custa que os nossos alunos não leiam Homero ou Virgílio, Petrarca ou Dante, Cervantes, Milton ou Blake, Strindberg, Dostoievski ou Beckett, e mesmo João Cabral de Melo Neto ou Guimarães Rosa (este último substituído nos manuais escolares por essa sua derivação pós-colonial que é Mia Couto)?No caso da nossa literatura dramática, dizia-me ainda esse colega, é evidente que se perde se não se ler Ibsen – mas, com franqueza, até se ganha se não se ler Bernardo Santareno. Dito isto, a situação portuguesa não é a mesma na literatura dramática que na restante, a qual tem Camões, Pessoa ou Vieira. Mas, esclareço, não se trata apenas de confrontar versões mais ou menos robustas do cânone. De facto, as consequências desta situação de pobreza textual são duplamente gravosas no caso do teatro, quero dizer, da sua situação sociológica e do seu desejado alcance sócio-político. Em primeiro lugar, e pese embora algumas das estratégias de compensação antes referidas, é empiricamente observável que os países em que existe uma forte tradição teatral são aqueles que possuem uma também forte tradição de literatura dramática, pelo que todas essas estratégias conhecem óbvios limites. Por exemplo, na habituação inter-geracional ao acto de «ir ao teatro» ver novas encenações de clássicos, os quais, até por mobilização do aparelho escolar, começam sempre por ser «os nossos clássicos». Ou seja, a inexistência de uma literatura dramática rica, que além do mais os cidadãos-leitores se habituem a ler e reler, antes e depois de a ver dramatizada em palco (e, contra as evidências da doxa, relembremos que o «teatro», enquanto texto, também é para ler: Shakespeare sempre foi um dos autores mais lidos da literatura ocidental), inibe, no caso português, uma sociologia do espectáculo homóloga à daqueles países em que a situação da literatura dramática é outra. Pretender que esta situação se altere drasticamente por injecção de capitais, públicos na sua fatal maioria, é talvez um desejo inevitável mas é seguramente pouco razoável pensar que ela alguma vez se possa vir a alterar significativamente, sendo a nossa produção dramática, a antiga e a contemporânea, o que é.Em segundo lugar, a debilidade patrimonial da nossa literatura dramática afecta decisivamente o potencial representacional do nosso teatro. Como vimos antes, trata-se, por esta razão, de um teatro com poucos objectos pedagógicos, e daí a sua decidida deslocação para o terreno do performativo político da nação. Mas esta deslocação inscreve uma decisiva aporia no corpo político do nosso teatro: a que resulta de ele renunciar, de facto, a representar a fundura histórica de uma nação com demasiada história ensinável, ao invés do que simetricamente ocorre com o nosso teatro (Gil Vicente, mais uma vez, não dá para tudo; duas peças do Judeu e outras duas de Garrett não são o bastante para mudar significativamente o panorama). Digamos que o primado do performativo no teatro português, que lhe assigna o imperativo de representar a história do presente, é um imperativo representacional por defeito. O nosso teatro deter-se-ia assim no presente (na pedagogia do presente) porque nada tem de comparável a oferecer no passado; e o performativo seria assim a sua verdadeira pedagogia. Sobretudo, nada tem de comparável à arte à qual a escola sempre cometeu a tarefa de acompanhar a pedagogia da nação: a literatura, e o seu emblema para todos estes efeitos, Os Lusíadas (ou, modernamente, as Viagens na minha terra)."

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